Descomplicar o tempo de festas e celebrar a alegria

Por À Roda da Alimentação

A última semana do ano passa sempre a correr. Depois do Natal, já estamos em contagem decrescente para o fim de ano, exaustos com as andanças de um lado para o outro, a compra de presentes, a preparação de refeições especiais, a obrigação de marcar presença com familiares e amigos, fazer telefonemas, responder a mensagens e, sobretudo, não estar em falta com este mundo e o outro. Sente-se cansado e quer que esta época chegue depressa ao fim? É normal, porque provavelmente esqueceu-se do mais importante: fazer uma pausa e celebrar a vida sem sentimentos de culpa.

Por mais estranho que pareça, o famigerado espírito de amor de que tanto se fala nesta altura passa muito pela simplificação dos dias – o inverso daquilo que esta fase nos exige –, porque só assim é possível celebrar a alegria, essa emoção tão profundamente ligada a uma forma saudável de estar na vida. Se não houver uma fuga à rotina e um tempo de abrandamento, perdemos a capacidade de tolerância para connosco e para com os outros; tornamo-nos incapazes de usufruir da nossa companhia, aquela com quem nunca devemos estar em falta, até porque, em última instância, somos a única pessoa com a qual temos de viver permanentemente e para sempre. Assim, é importante dar margem para os excessos normais desta época, permitir-se comer mais, compreender que não é realista fazer dietas nesta altura do ano e sobretudo não julgar os outros por aquilo que comem ou, pelo contrário, por aquilo que não comem.

É fácil envenenarmos o estado de espírito festivo se não pusermos para trás das costas preocupações tão prosaicas como, por exemplo, contar calorias ingeridas nesta altura, a pior fase do ano para este tipo de apuramento; sentirmo-nos em falta porque o corpo anda mais pesado e diferente, algo perfeitamente normal, uma vez que comemos alimentos pouco habituais; culpabilizarmo-nos por faltar ao ginásio, já que é perfeitamente natural que não haja tempo nem vontade de o fazer; criticar a conduta de alguns familiares e amigos com outras opções de vida – por serem veganos, por comerem muita carne vermelha com batatas fritas, por detestarem a gastronomia natalícia, por se empanturrarem muito, por comerem pouco ou por beberem um bocadinho mais do que a conta, desde que não conduzam. Lembre-se de que o seu corpo não é o corpo dos outros e aquilo que é bom para si pode não o ser para as outras pessoas. Em suma, vale a pena fazer um esforço para não tornar baço o brilho natural desta época do ano que se quer alegre e feliz.

Um exercício interessante para desconstruir a rigidez física e mental consiste em pensar que importância terá aquilo que nos preocupa hoje no dia de amanhã, para a semana que vem ou no próximo mês. Relativizar é ver a importância das coisas a partir de um ponto de vista abrangente que nunca pode ser encontrado quando estamos sempre no mesmo lugar, ou seja, quando estamos sempre com a mesma atitude. Portanto, descomplique nas alturas certas para fazer exceções à regra. Quebrar rotinas é uma forma de nos permitirmos viver momentos de maior leveza, sem a exigência de fazermos tudo bem, em todas as frentes, de uma forma perfeita, uma obsessão típica  que tem tudo para nos tornar exaustos e infelizes.

«Desrotinar» é fazer uma espécie de festa alternativa – não a dos outros e para os outros, mas a sua. Se pensar bem, talvez não tenha conseguido ficar sentado a ler um livro; também não teve tempo para fazer aquele programa de sonho tão acessível e que consiste simplesmente em passar uma tarde inteira no sofá com uma manta, ao lado do cão ou do gato, a ver um filme há tanto tempo «guardado para ver depois»; ou simplesmente passar horas e horas a pôr em dia conversas adiadas com um amigo especial de longa data, com quem lhe apetece mesmo estar a petiscar sem sentimentos de culpa.

Fazer do tempo de festas um período verdadeiramente especial, livre de medos, rotinas, receios, complicações e preocupações é também uma aprendizagem para ser menos rígido consigo e com os outros, aceitar melhor aquilo que é, as pessoas e a vida, criando um estado de acolhimento e de tolerância para deixar, ao espírito da época, que os outros sejam também aquilo que são. Já pensou que o que lhe apetece comer e fazer pode não ser aquilo que os outros querem ou vice-versa? Em caso de comportamentos alimentares compulsivos (alimentação compulsiva), há sempre a possibilidade consultar um nutricionista, um psicólogo ou um médico de família, mas esta altura do ano não é a indicada para pensar nisso, visto que se trata de um período em que os excessos são naturais e muitas vezes confundidos com compulsões alimentares.

Assim, não implique com o familiar vegan ou vegetariano, com a avó que tem o colesterol alto e ainda assim quer repetir aquela sobremesa deliciosa, ou com o irmão que detesta as tradições gastronómicas da época, vá-se lá saber por que razão. Um espírito de união e partilha passa por este tipo de complacência que cria uma conexão genuína com aqueles que são mais importantes.

Em última análise, «descomplicar» e «desrotinar» o tempo de festas adotando uma atitude mais flexível e tolerante é um grande presente de Natal que pode oferecer a si e aos outros. Além disso, é também o princípio da criação de memórias essenciais que só são possíveis num espírito de alegria e de tolerância. E contas feitas, é isso mesmo que acaba por ser o mais importante.

Feliz Ano Novo!

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À Roda da Alimentação